se quiser saber um pouco mais do mesmo, nada de novo:

um dia como hoje *


Acordou cedo. Não queria atrasar de jeito nenhum. Tomou café preto. Quase esqueceu de levar a tal “apostila de cidadania” pela qual pagou três reais. “Gente, este é o preço de custo, da fotocópia”. O trajeto levaria mais ou menos uma hora e meia até o centro. Ao entrar no ônibus viu um lugarzinho pra sentar no fundo. “Vai dar pra tirar um sono”. Antes de se ajeitar começou a folhear a apostila de umas dez páginas: “Essa apostila tem por finalidade informá-lo(a) sobre os princípios e a filosofia que norteiam o projeto Educafro, com os textos Sete atos oficiais que decretaram a marginalização do povo negro no Brasil e Universidades públicas e ações afirmativas...”
Acordou cedo, mais cedo do que o normal. Desprezou o café da empregada. O pai o apressou. “Te deixo no ponto, vamos! Você parece que não sabe o valor que eu pago nesse colégio”. Pegou de relance o encarte da aula especial de história. Calçou o Hellbender novo e foi. O percurso de ônibus seria uns 40 minutos. “Será que aquela menina vai na festa hoje? O esquema é ir de carro na festa... sem carro não rola”. Abriu o livrinho em qualquer página. “Capítulo 8: A geração de maio de 68”. Passou para uma folha um pouco antes e leu: “os principais líderes da Revolução Cubana, em 1959, eram jovens, entre eles, Ernesto Guevara, que aos 20 anos de idade já percorria o continente com o amigo Alberto Granado...”
Acordaram bem cedo, como era costume. “Gente andando pra lá e pra cá na rua pertuba”. O sinal que um fez pro outro era de confirmação. O mais velho apontou para o ônibus que vinha. Subiram no ônibus os dois e ficaram perto do cobrador. “Você leva a caixa de doce, e eu cuido do resto, mano, certo?”
“Putz meu, tem que estudar mais se quiser ir pra fora fazer medicina. Será que rola mesmo? Se não for medicina, vai turismo ou farmárcia. É melhor ir pra fora e ter liberdade. Demorou!”. Voltou na parte do livro sobre 1968: “a juventude de Paris protestava com a mesma força que outros jovens ao redor do mundo. Nesta época também eclodiam fortemente os movimentos por igualdade racial nos Estados Unidos”.
Apesar de cochilar um pouco lá fundo, o susto com a lombada fez o sono sumir. Voltou a ler a tal apostila. “Será que vai ser rápido esta palestra?” Uma parte ilustrada chamou atenção: “Quem se preocupa apenas com quantas horas se estuda, esquece do desperdício de tempo de estudo. Uma hora de estudo com qualidade vale mais do que 5 horas sem qualidade – dica do William Douglas para a Educafro”.
Passou um ponto mais movimentado e algumas pessoas desceram. “O que é isso, como que vai passando ser pagar assim?” É melhor ficar quieto cobrador!” “Motô, segue seu roteiro que vai ser rapidinho aqui”. E apontou a arma (debaixo da camisa?) para o cobrador. Umas senhoras gritaram, sem saber como reagir. “Pessoal, presta atenção só na caixa de doce que eu tenho pra vender aqui... esquece o resto, nem olha pro colega não, ele vai ser rápido”. “Mano, vem polícia aí na frente, corre, vamo!” E deu um empurrão em quem tava em pé, foi pro fundo e quando a velocidade diminuiu, pulou fora. “Filho da puta, cê amarelou?” Correu também, tirando a mão da camisa. Não tinha arma nenhuma, não tinha nada, aliás, nem experiência, nem coragem de roubar. Vontade? Mais ou menos... Necessidade? Muita.

Uma senhora: “tem que levar pra cadeia mesmo, bater!” O rapaz do colégio rico sussurrou: “é tudo preto fedido...” O cobrador: “pegaram os dois, olha lá, se deram mal, levaram os caras.” Alguém no canto: “como que pode uma coisa dessa? Aquilo é marmanjo.” O rapaz da apostila de cidadania não disse nada, apenas ficou percebendo os detalhes de cada cena, cada nuance, decodificando a realidade exposta.
Houve mudança na política da FEBEM. O diretor daquela Unidade era outro. O discurso, porém, o mesmo. O monitor que os recolheu também era outro, mas nem perceberam seu semblante. Ali era o lugar-comum. “Cara, foi vacilo, foi mal”. “Na próxima vez a gente...” O funcionário: “Os meninos são novos no pedaço, né?” Melhor falar menos, certo? Os dois!”

Desceu no Anália Franco. Era dia de festa no colégio, com atividade especial de manhã e simulado à tarde. “É hoje meu, nem aqui eu fico”. E foram vários, do terceiro colegial para a lanchonete. Dali para o shopping, caixa-automático e cinema. Cigarro e cerveja era comum. Mas queriam conhecer algo diferente. De outras fontes, outros negócios. “Trouxe o dinheiro?”
Desceu no parque Dom Pedro e foi a pé até a Riachuelo. “Sejam bem-vindos! O projeto Educafro, que é muito mais que um pré-vestibular, acolhe vocês com alegria. Quem não adquiriu a apostila de cidadania pode levantar e retirar ali na mesa. Meu nome é Heber e a gente preparou um slide para vocês acompanharem melhor o conteúdo”. Ele tomou água, escolheu um bom lugar e ficou pensando nos dois jovens. Reparou: “são negros como eu. Caramba, a maioria é mulher”. No microfone: “Antes disso pessoal, eu queria perguntar uma coisa: quem aqui tem um sonho?” CWB

"Mesmo que eu tenha que cruzar terras e mares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares
Mesmo que no caminho me sangrem os calcanhares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares
Mesmo que os inimigos contra nós sejam milhares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares
Enfrento os Borba Gato e os Raposo Tavares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares..."

poema de Dugueto Shabazz

*Nome de uma canção da banda Ira!, de Edgar Scandurra.

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