se quiser saber um pouco mais do mesmo, nada de novo:

Sobre o que se diz sem dizer

Encontrei isso a algum tempo.
Ficou guardado na gaveta.

Sobre o que se diz sem dizer

"Que rara beleza era aquela, que não se compra em banca de revista e quase não se vê na novela." Sexta-feira. Havia parado de garoar. O ônibus seguia nem tão cheio, nem tão vazio, sempre acelerado, o mesmo caminho, igual a todo dia. A moça seguia em seu silêncio-introspecção, lá no fundo, com o seu fone de ouvido, seu olhar distante mirando o nada pela janela, Viajando de pé (só eu e mais 2 passgeiros), eu a via sentada no penúltimo banco. Ela fazia poucos sinais com os dedos, com a cabeça, como quem acompanha a música, em ritmos alternados, ora mais rápido, ora mais lento. Ela tinha um jeito... uma beleza meio jogada, distraída. Nisso, eu me distraí, observando a menina que ouvia o seu MP3 e acabei passando do meu ponto . Pensei: "melhor ir até o final mesmo e depois voltar. Tô sem nada pra fazer em casa mesmo!"

E olhando pra rua, tentando espairecer, flagrei uns moleques jogando bola num terreno. Acabava de abrir um solzinho meio fraco. de fim de tarde em fim de inverno. "Como eu queria tá no meio deles". Consegui um lugar pra sentar. Bom pelo cansaço, mas ruim porque eu não teria mais como olhar mais para aquela jovem. Houve uma freiada brusca. Um susto geral . Aí pensei: "será que eu tô ficando apaixonado?" Mais uma parada, eu olho pra trás. Lá está ela, enigma no rosto, cabelo black, corte e penteado afro, solto, unhas pintadas, mochila cor de laranja, tênis, calça jeans, anel de casca de côco, colar preto, brincos em forma de sol, batom quase imperceptível, um rosto ao mesmo tempo dócil e cansado, terno e sério, com a marca do tempo e aparentando criança, que idade teria? Em que estaria pensando? Que música ouviria? "Que rara beleza, que não se compra em banca de revista e quase não se vê na novela". Quando o ônibus faz uma curva e pára no próximo ponto, sobem várias pessoas ao mesmo tempo. Vários estudantes, um homem, um casal de idosos, uma mulher nova com criança no braço e uma senhora de uns 45... 50 anos, tornando o espaço um pouco mais concorrido. Esta senhora tinha um sorriso aberto, encantador e olhos concentrados. No clima leve e desligado que eu vinha nos últimos minutos, fiquei ali parado, observando cada figura, cada um e cada uma que entrava na condução, um bêbado, um aposentado... De repente percebi que a minha nova amiga, do fone de ouvido, lá do fundo, havia sumido. Desceu sem dar notícia. Beleza-passageira. De onde teria vindo? Para onde foi? Bem do meu lado, estava a senhora que falei, aparentado seus 45 anos. Não quis assentar. De pé, com seu vestido colorido, tipo colcha de retalhos, cheio de detalhes em luas e estrelas, tirou algumas balas caseiras do bolso e as ofereceu, pedindo ajuda. Falava com um belo sotaque do norte. Algo assim do Pará ou Amazonas. Poucos compraram. Fiquei com algumas e saltei antes do final. Resolvi voltar a pé pra casa. Há tempo não caminhava à noite pelo bairro.

Não parei de pensar no silêncio-intuitivo da moça e seu rosto indecifrável. E também no vestido colorido da senhora das balas e mãos calejadas. Esta última, por fim, me transmitiu um ar sereno, caboclo-indígena, de quem sabe o que está fazendo e tem a exata noção do que é viver. Teria vindo há quanto tempo? Teria filhos? Netos? Teria outro trabalho que não vender balas? E aquele vestido... tantas cores... fortes como as cores sul-americanas... seriam as cores de seus antepassados? Seriam retalhos costurados de cada marca latina que a cidade grande faz em seus moradores de passagem?

Quem sabe um dia re-encontro essas duas mulheres e aprendo um pouco mais sobre a vida e o quanto temos a obervar naquilo que poucos vêem, nos momentos simples, no que se diz sem dizer.

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