se quiser saber um pouco mais do mesmo, nada de novo:

Gostei muito deste texto sobre a falsa abolição

ABOLIÇÃO INCONCLUSA?
Marcus Orione Gonçalves Correia[1]


Na noite de 29 de maio de 2008, foi realizado, na Faculdade de Direito da USP, júri simulado. A ré: “a abolição inconclusa?”. Discutiu-se, por óbvio, a verdadeira redenção dos negros com a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.
Os debates, como não podia deixar de ser, foram cheios de fervor.
Impressionou-me, no entanto, a verve dos escolhidos para a defesa da abolição, considerando-a como processo já concluído. Fique impressionado com Dora e Hamilton. Negros e belos!
A beleza de ambos ficou mais nítida quando realizaram a defesa da abolição.
Naquela noite, certos fatos me chamaram a atenção de forma mais próxima.
Antes do início das atividades, Hamilton tomou a frente, naturalmente, das questões de organização. Nos indicava, com uma liderança que emergia de seu íntimo, como proceder. Falava de forma muito desenvolta. Fiquei encantado com o meu líder negro. E pensei em quantas lideranças negras o Brasil havia perdido. Refleti sobre o quanto o meu país tinha se perdido, por deixar se perderem Miltons, Hamiltons ... Onde estariam os nossos santos? Por acaso, dormiam escondidos em nuvens brancas? Onde estariam os nossos santos? Por acaso, protegendo apenas os nossos guerreiros brancos? Será que, sem santos, teremos que, nós mesmos, nos defender?
Impressionou-me, ainda, Dora. Faltava-lhe apenas uma bíblia na mão, tamanha a sua intimidade com as escrituras. Recomendou-me a leitura dos Salmos, versículo 85 (qualquer coisa como “quando, nos céus, direito e justiça se beijam”, me confidenciou). Calma, miúda em seu canto, a quase imperceptível Dora. Nas preparações para o júri, quedou inerte, dona de palavras poucas. Exalava de Dora a quietude que doura campos vastos, quase que calados. No entanto, quando o júri se iniciou, transformou-se e o seu mistério desvendou-se na mesma força de sua antes-quase-ausente-fala.
Condenada, pelos jurados, a abolição, por sua inconclusão, restou-me, como juiz, dar a pena. Em poucas palavras:
“Em quinze anos de judicatura, pensei que de minha boca jamais sairia esta sentença. Hoje, no entanto, o faço com felicidade, esperando, no entanto, nunca mais repeti-la. Impinjo à ré a pena de morte. Que morra a abolição inconclusa! Pena de morte para a sua inconclusão. Morta a inconclusão, que surja, densa e forte, a verdadeira abolição dos negros em nosso País. Dado o veredicto – condenação por unanimidade. Dada a pena – pena de morte. Darei, agora, o meio de execução da pena. Esta inconclusão não será extinta por meio da cadeira elétrica. Esta inconclusão não será finda com o uso de injeção letal. Esta inconclusão deveria falecer pelo amor no coração dos homens. No entanto, enquanto este amor não vem, utilizarei, para a morte da abolição formal promovida pela Lei Áurea, a determinação de que o Estado e os particulares promovam, para a inclusão dos negros, ações afirmativas – em especial as cotas raciais. Quando pronuncio esta condenação, em especial com a utilização deste meio de execução da pena, muitos me perguntariam: senhor juiz, com esta sentença, o senhor, homem branco – com um filho branco -, não estaria condenando o seu próprio filho? Estabelecidas as cotas, ele será prejudicado, com uma vantagem estabelecida em favor de alguém apenas pela cor de sua tez. Respondo a estes: hoje, meu filho já está condenado. Está condenado a ser um opressor. Vivendo, nos mais diversos ambientes em que transita, apenas com pessoas forjadas nas lições do que oprime, certamente meu filho se tornará, também ele, um opressor. Quero que o meu filho compartilhe os seus espaços, em especial as suas escolas, com os oprimidos. Quero, ao lado do meu filho, os índios, os negros, o quilombolas ... Somente assim, meu filho conhecerá outra gramática: a gramática dos oprimidos. Deixará a sua geografia: a geografia dos opressores. Aprenderá o destino da sua história, a verdadeira história da humanidade, na qual não devem existir oprimidos e opressores, mas apenas homens. Extirpando, por este meio, a abolição inconclusa, liberto não apenas os negros, liberto também o meu filho branco”.
Finda a condenação, Dora conta a história de Rose, falecida há pouco tempo atrás. Lembrou que vigoravam, em parte dos Estados Unidos, leis de segregação. Rose, depois de um dia extenuante de trabalho, voltando para casa, toma assento no ônibus. Um homem branco, ao entrar, determinou que se levantasse e oferecesse a ele o seu assento. O homem se sentia amparado pela legislação segregacionista que determinava que, se um negro estivesse sentado em algum meio de transporte público e um branco chegasse, o primeiro deveria se levantar para que o segundo tomasse assento. Rose resistiu e não se levantou. Foi presa. Em insurreição, liderada por Martin Luther King, a comunidade negra norte-americana ficou por quase 365 dias sem utilizar ônibus. Iam para os seus trabalhos a pé ou de bicicleta. Enfim, por todos os meios possíveis, menos com a utilização de ônibus. Diante desta pressão, foi necessária a revogação da legislação de segregação.
Fiquei marcado, ainda, por uma afirmação de Dora, atribuída a Martin Luther King, qualquer coisa como: “a lei não poderá fazer com que os homens me amem, mas pelo menos não deixará que me massacrem”.
No final, Hamilton me apresentou a sua mãe. Aquele homem, líder guerreiro negro,virou novamente criança ao me apresentar a mãe negra. Lembrou-me de que todos, no fundo, somos crianças, apresentando as nossas mães. Orgulhosos de nossos feitos. Compartilhando-os com nossas mães, brancas, negras, amarelas ... Como se fôssemos crianças. Na verdade, crianças que brincam de uma brincadeira nociva. Tão perigosa como quando brincávamos junto ao fogo. Tão ameaçadora como quando brincávamos com nossas mãos pequenas com materiais de limpeza, impregnando-as de soda cáustica. Brincamos, como crianças perdidas e ameaçadas, de um jogo tolo, chamado “quem-toma-o-poder”.

[1] Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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