se quiser saber um pouco mais do mesmo, nada de novo:

Josías, Helton e Roberta são nomes fictícios


Josías, de Santa Catarina: Ele nunca reclamou de ter que trabalhar e nem tinha preguiça, mesmo sabendo que o seu pai não lhe pagaria um "tostão" para que fosse o seu ajudante. Foi na roça que ele aprendeu a lidar com medidas, pesos, distâncias e com as linguagens da natureza. Encantamento. O dia começava cedo para Josías. Sempre foi assim. Quando o pai disse que precisava dele trabalhando, a rotina se sacramentou. A mãe o "derrubava" da cama às 4:15 e antes das 5:00 Josías já estava com a enxada ou o restelo na mão. Determinação.

O tempo passou. Mesmo sem fazer cursinho encarou o vestibular na Capital. Passou na 4ª chamada. Na vida de universitário, acordar cedo não era problema. Os pais de Josías deram o aval para o garoto optar pelo curso no período matutino. Logo no terceiro mês de faculdade, a seleção para o estágio no IBGE confirmou a expectativa dos professores de Josías. Ele foi aprovado em 2° lugar na prova e pôde então ocupar-se das 13:00 às 18:00 horas com um trabalho envolvente, dentro do seu campo de estudo. Foi lá que conheceu a nova namorada Luana, uma das poucas alunas negras do curso de Odontologia na Federal, com quem conheceu a cidade de Floripa, em seus inesquecíveis passeios de domingo.

Helton, do Rio de Janeiro: Cala a boca! Já pra fora! Pra fora! Helton tinha ainda 7 anos. Não havia opção senão acatar a ordem. Voltava pra favela triste por não sair na mesma hora que seus coleguinhas, mas feliz (curiosamente feliz) por não precisar ficar mais nenhum minuto perto daquela professora loira que tanto o infernizava. Desespero. A vida de Helton e dos meninos do morro quase sempre foi "barra pesada". O objetivo da maioria era ter aquilo que tinham os "donos da quebrada", normalmente traficantes: Poder. Para os meninos de 9, 10, 12 anos, ter poder era simplesmente ter armas e várias namoradas ao mesmo tempo. O sonho verdadeiro, utópico, era jogar no Flamengo, no Vasco ou cantar em um grupo de samba. Ilusão.

Para Helton, ser o filho mais velho o tornava um pai-irmão dos outros 6 mais novos. Passar da 8ª série, lembrando sempre dos gritos da "carrasca", foi inusitado. Fazer o colegial foi mais bacana, talvez por ter os três colegas "playboys" na sua sala, que lhe davam atenção. Esses três colegas eram a exceção na sala. Às vezes, Helton até levava a maconha pra eles.

O tempo passou. Quando viu a cara do pessoal da sua turma no primeiro ano de Medicina na UERJ, mesmo já estando com 27 anos (6 anos "parado" e 2 anos de cursinho comunitário), ele lembrou dos colegas "classe- média" do colegial. A diferença era que ele e os outros três alunos negros da sala eram a exceção agora. Helton não trocava a tarde de sábado por nada, já que era único momento em que podia brincar com o irmãozinho mais novo (o sétimo... fruto do namoro novo da mãe). Adorava colocar o jaleco no menino e pedir para o "pretinho" consultá-lo e lhe dar receitas pra comprar remédio...

Roberta de São Paulo: Os dias de chuva chegavam a ser engraçados (isso se não fossem trágicos). A escola de Roberta era a "campeã" do bairro em vidros quebrados e também em pichação. Além das infiltrações na parede, a "chuva de vento" fazia chover dentro da sala, inclusive na carteira de Roberta. Da 6ª série ao 1° colegial, a turma de Roberta teve inúmeras trocas de professores e professoras. Química, inglês, física, geometria... só nos livros. Naquela escola tinha de tudo, menos aula. Comédia?

A região metropolitana oferecia grande facilidade de deslocamento entre uma cidade e outra, para quem procurava emprego. Por pelo menos três vezes Roberta recebeu indicações de amigas para ir trabalhar em casa de família. A mãe dela, analfabeta, diarista desde os 15 anos de idade, foi contra. Disse que enquanto a filha não terminasse os estudos, não iria permitir que ela trabalhasse fora. Numa reunião na escola, em época de enchente, a mãe de Roberta brigou com a Diretora e o conselho da escola decidiu chamar os pais (que estavam desempregados) para reformar o prédio. Muita gente deu o nome, mas só dois apareceram. Vexame.

O tempo passou. Quando Roberta passou no vestibular de uma faculdade pública nem mesmo os professores acreditaram. Que faculdade era aquela que o pessoal da escola nem conhecia? Na formatura da sua turma, muito mais do que uma citação feita pelo reitor ou a emoção durante a fala da oradora, foi o abraço na mãe que a sacudiu por dentro: Engenheira! Recém aprovada no concurso público federal, uma das melhores notas da turma!

Um pouco mais sobre o tema: O professor universitário Marcelo Stratemberg, pesquisador da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), realizou estudos em vista de fornecer àquela instituição de ensino público federal subsídios acerca de diferentes métodos de ações afirmativas. A UFSC estava disposta a usar sua autonomia para adotar algum mecanismo que diminuísse o fosso abismal de desigualdade de acesso a seus cursos, principalmente entre brancos e negros. Verificou-se, com projeções e sérias pesquisas acadêmicas, que o modelo ideal é o de reserva de vagas, único capaz de garantir o ingresso de negros nos cursos da UFSC. Marcelo, que estudou também a proposta de bônus ou pontuação acrescida (como USP e Unicamp), concluiu que o melhor modelo para quebrar a tradição excludente é a reserva mínima de 20% das vagas para negros. A universidade percebeu que a adoção de cotas apenas com caráter social (estudantes da rede pública), não garantiria acesso de negros. Escolas particulares e filhos de famílias ricas de Santa Catarina ingressaram na Justiça contra o sistema de cotas. Mobilizaram-se em defesa de seus seculares privilégios. Perderam. Perderam feio. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou que a autonomia da universidade deve ser preservada neste caso.
Josías, personagem deste texto, só alcançou a aprovação no vestibular por causa do sistema de cotas. Ele foi o primeiro membro de sua família de colonos pobres do oeste catarinense a fazer um curso superior. Assim como Josías, outros milhares de jovens oriundos de escolas públicas ingressaram em 51 universidades públicas brasileiras que adotam ações afirmativas para pobres, negros, indígenas, mulheres, portadores de deficiência física, filhos de policiais, professores da rede pública, etc... com diferentes métodos, mas sempre com intenção de diminuir as desigualdades e cumprir o papel social da universidade. Parabéns à UnB, UFPR, UFBA, UEMS, UEMG, UFPE, UEBA, UEGO, UFRN...
A primeira universidade pública a adotar cotas no Brasil foi a UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no vestibular de 2002/2003, juntamente com a UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense. O jovem Helton, citado no texto, faz Medicina na UERJ, que está avaliando os resultados dos 5 anos do sistema de cotas. Logo no primeiro ano, uma pesquisa demonstrou que, em geral, as notas dos cotistas (ingressantes por meio de cotas) são maiores do que as notas dos não-cotistas. O índice de evasão (desistência) entre aqueles que estudaram em escolas particulares, é maior do que entre os cotistas (negros, indígenas e estudantes de escolas públicas)3. Hoje, inicia-se um novo ciclo, um novo perfil social de profissionais formados pelas universidades estaduais do Rio.
A imprensa noticiou, em fevereiro de 2008, que no vestibular da USP/FUVEST o curso de Medicina teve apenas um negro (preto) na lista de aprovados. Há anos o percentual de aprovados da rede pública é quase zero nos chamados "cursos de elite". A USP nega-se a adotar qualquer medida com recorte étnico-racial e insiste no falido INCLUSP, alvo de ação do Ministério Público e que, pelo segundo ano consecutivo provou ser ineficaz quanto a seu propósito inicial: incluir estudantes da rede pública, dentre os quais, os negros, historicamente excluídos da maior universidade pública do Brasil.
Também na Grande São Paulo, há quilômetros de distância da USP, a garota Roberta, a qual se referiu este texto, freqüenta as aulas na Universidade Federal do ABC (UFABC) que, desde sua criação, em 2005, reserva 50% das vagas para estudantes da rede pública, sendo 30% para negros, em atenção ao percentual de negros no Estado de São Paulo. Todas as universidades federais presentes no Estado de São Paulo aprovaram o sistema de cotas. A primeira foi a UNIFESP – Escola Paulista de Medicina, que ampliou 10% do número de vagas e as reservou para estudantes negros. Recentemente a UFSCar também aprovou a reserva de 20% de suas vagas para estudantes negros. Na USP, negros não passam de 9% (somados os pretos e os pardos), em âmbito geral. Nos cursos de Direito, Odontologia, Administração, Publicidade, entre outros, são invisíveis. Ou melhor... às vezes 1, 2 ou 3 alunos negros, quase sempre africanos em programas de intercâmbio. Por que tanta exclusão? Por que fugir da responsabilidade diante de um problema tão grave? É o dinheiro da coletividade que mantém a USP. Já não basta ter constatado que o desempenho acadêmico dos egressos de escolas públicas tem sido melhor? Medo de conflitos étnico-raciais? Ou manutenção de privilégios e espaços de poder? O que leva a Reitoria da USP a ser tão conservadora e elitista?
Josías, Helton e Roberta são nomes fictícios. Poderiam ser verdadeiros. Pessoas como eles talvez não tenham a chance de ler este texto. Quem sabe suas histórias se repitam numa das esquinas da vida, nas histórias de Juliana, André, William, Grace, Joana, Maria, José, Paulo César, Fábio, Everton, Antonio Carlos, Janaína, Fernanda, Joaquim, Graziele, Marcelo, Francisco, Geralda... tantos que sonham em entrar numa universidade e as universidades lhes fecham as portas e jogam no lixo suas capacidades e talentos.
Tanta gente caminha por esse mundão e procura o seu rumo, o seu lugar. E se, de repente, a gente se encontrar e puder caminhar junto? Muito mais do que esses meninos e meninas das periferias do Brasil, o fato é que milhares de lutadores estão alcançando o direito de estudar por causa das ações afirmativas e das cotas.
Iniciar a carreira universitária é apenas o primeiro passo em busca da inclusão! A responsabilidade das universidades e do Estado para com a inclusão social e étnica é bem maior do que aquilo que está sendo feito hoje. Estão deixando muito a desejar. Há muito que se fazer. Ainda vamos cobrar muito da USP, UNESP, UFMG, UFRJ e demais universidades que, com a sua omissão, perpetuam a discriminação, o racismo, a exclusão social, as desigualdades. Nossa luta e desafio são grandes. Como cantava Raul Seixas: Baby essa estrada é comprida... a gente ainda nem começou! CWB

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